Colecção Berardo

Sombras & Negócios <strong>(1)</strong>

Manuel Augusto Araújo
A relação entre colecções e museus é muito variável e nem sempre transparente. A lógica de um museu não é a de uma colecção. Em Portugal, a melhor demonstração dessa descoincidência é a do chamado Museu de Design, feito na base da colecção Francisco Capelo, em que a grande maioria dos objectos expostos não são significativos da história do design, não contribuindo para o entendimento nem dos desígnios nem da evolução do design, que é o que se deve exigir a um museu. A grande maioria, adquiridos segundo o legitimo gosto do coleccionador, não se legitimam por quaisquer critérios exteriores a esse gosto. Dizia ironicamente Daciano Costa que há mais desain que design no Museu do Design. Irónica e premonitoriamente já que esse dito museu surge agora com um título mais consentâneo com o seu conteúdo: Museu de Design e Moda. Muitos dos objectos que fazem parte do seu acervo e são ditos de design relevam mais da efemeridade do restyling do que da disciplina do design. A junção da moda deriva dessa lógica, estando por debater se o fenómeno fashion, enquanto espectáculo de confluência do individualismo, da frivolidade e do poder, que vive da encenação de obsolescências e renascimentos, é susceptível de ser encerrado as quatro paredes de uma galeria. Não pode, esse denominado Museu da Moda e do Design ser, em rigor, considerado um museu, apesar das alterações que têm sofrido os critérios que fundamentam a instituição museu, para elasticamente absorver algumas distorções ao conceito fundador que continua, acertando o passo com o tempo, a manter-se válido. A ausência de muito do que mais paradigmático se produziu desde que o design como disciplina se autonomizou, não se resolve com adições de outras áreas procurando mascarar e diluir as suas fragilidades originais. Refira-se para não esquecer, a representação residual do trabalho desenvolvido pelos designers portugueses, o que num chamado Museu do Design instalado em Portugal, deveria ter merecido alguma atenção. O selo Museu de Design serviu para um bom negócio para o coleccionador que, homem avisado e farejador de oportunidades de mercado, vendeu por atacado a sua colecção ao executivo dos pedros e vanessas da autarquia alfacinha que tinha urgência em se nebulizar com fragrâncias culturais.
A relação entre as colecções e os museus nunca foram pacíficas. Tem lógicas e pontos de partida e chegada diferentes. Uma colecção quando aporta a um museu ou dá origem a um museu, e os primeiros museus foram criados a partir de colecções privadas, deriva o seu sentido e passa a construir-se com outro travejamento. A passagem da esfera privada para a esfera social faz com que a investigação científica, histórica, sociológica, estética se torne dominante e determinante no futuro e na continuidade das colecções.
Colecciona-se orientado por valores culturais, estéticos, científicos, colecções de arte ou de instrumentos cirúrgicos, etc., ou por espírito respigador e de entesouramento, moedas, postais, pacotes de açúcar, etc. Haverá sempre elementos de prazer pessoal e de espelho narcísico do coleccionador, qualquer que seja o tipo de colecção.
Entre as colecções, o modo como surgem e vão crescendo também é muito diverso e dependente dos seus patrocinadores. Colecções de obras de arte como a Thyssen, Rau, Frick ou Manuel Brito vão-se vertebrando em função do conhecimento e do gosto dos seus titulares. É evidente que, por maior que seja a paixão que os move, sabem que estão a fazer um investimento, mas os termos não são comutativos. A estas colecções destinos diferentes foram-lhes reservados e fixaram-se em soluções variáveis entre vendas e doações, adquirindo estatutos diferentes, mantendo-se a sua autonomia, caso da Frick, sendo entregue a uma instituição, caso da Rau, ou fixando-se numa parceria com um Estado, caso da Thyssen e não tendo ainda definido o modelo, por o seu detentor não ter tido tempo para o fazer, caso de Manuel Brito. Mas todas elas têm a marca inicial do seu organizador.
A colecção Berardo é outra coisa. A colecção Berardo não existe para Berardo. Para o seu patrocinador é uma soma de assinaturas que representam um determinado valor monetário. É um negócio e como negócio foi negociada pelo comendador que chegado ao fim desta etapa berrou, para que não subsistissem dúvidas, ser o vencedor. E foi claramente vencedor pela mão do «nosso» primeiro Sócrates, ventríloquo do seu assessor cultural, pelas cedências patentes nas intervenções entarameladas da Ministra da Cultura, esquecida de quando rugia às armas enfrentando os ultimatos do comendador, para gozo das hostes dos lobbies, a cola das afinidades que os unem não é principalmente metafísica, que querem manter entre mãos as teias por onde circulam sinecuras e prebendas. Uma história exemplar do nosso portugalzinho.


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